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O dia estava quente, ela pôde sentir o sol torrar seus braços, cobertos pelo pano da camisa xadrez. Insistiu no lugar, brincando com as mãos atrás das costas suadas e encravando o tênis preto no asfalto cálido da calçada. Os ossos estalaram, enquanto ela parecia arrancar seus próprios dedos; só precisava de um tempo para o próximo passo. E sempre que não estava pronta, Morgana sumia, naquele momento olhando o jogo de luz no vidro dos carros, estaciona-
dos do outro lado da rua. À beira daquele faroeste urbano, em plena tarde de domingo, não soube bem o que esperar. Iria recebê-la, tinha quase certeza, mas a indecisão era pegajosa, o anestésico perfeito; você não sofre por suas escolhas no exato momento em que hesita tomá-las. "Dane-se", era mesmo necessário entender o porquê ? Tinha suas dúvidas, até sobre aquilo.
Lá se foi Morgana, impulsionando o corpo para frente, depois de prender os cabelos atrás das orelhas. Assim que pôs os pés na estrada, cruzou os braços sobre o peito em uma tentativa boba de se proteger; a argola no topo da cartilagem, feita com a total desaprovação da mãe, brilhou irreverente sob os raios do sol. Atravessou a praça deserta em direção ao belo prédio com vista para a baía, mas daquela vez não se conteve pressionando o nome Jùlio e qualquer coisa no interfone. Na sua cabeça já não havia nada além do céu límpido e ríspido. O portão abriu sem aviso, acompanhado de um chiado desagradável; ele devia estar na janela, espiando. Morgana entrou com as pernas meio trêmulas, subindo as escadas até o segundo andar. A porta estava aberta e como havia imaginado, Jùlio fumava, apoiado à vidraça da varanda.
Virou-se de leve para vê-la, parada no meio do apartamento, os cabelos castanhos arrepiados pelo calor e o rosto corado; "sabe-se lá quanto demorou para tocar aqui", acabou pensando. Morgana sufocou a ânsia, sem querer saber dela, "Água" disse, ensaiando um copo no ar. "Pode pegar" e depois de sorrir Jùlio voltou a torturar seu cigarro. Toda história precisa de uma explicação e no final não tinha muito mistério. Jùlio Novaes era seu psicólogo, embora não parecesse tão profissional. Ao voltar da cozinha, Morgana parou para olhá-lo e quase riu, até que estava melhor naquele dia, pelo menos calçava um par de sapatos. Não tinha muitos clientes, talvez por atandê-los em casa com camisetas do rock e oferecendo limonada. Jùlio apenas não entendia como nove entre dez coisas podiam ser consideradas antiéticas. A verdade é que pessoas não fazem sentido.*
Jùlio, definitivamente, não queria consertar ninguém, nem podia. Ficou na varanda, ele sempre resolvia assim, com os cabelos pretos grudados no vidro e um braço atrás das costas.
- Aconteceu alguma coisa?
A voz dele fugiu lá para dentro, firme, enquanto o cigarro morria entre seus dedos; raramente os lábios encostavam no filtro quando a escutava. Nem sempre Morgana respondia, às vezes demorava um tanto. Jùlio não olhava, sabia que seria inútil e ela não iria falar. Dar as costas era um sinal ali, estavam livres para fazerem o que precisassem, fosse bom ou mau. Pôde inventá-la na cabeça, passando a mão na borda da mesa, na madeira escura e maciça, com os pensamentos a mil por hora ou talvez estivesse calma, ela se perdia nos livros, quadros e luzes, tinha aquele jeito de escapar das coisas. Ele não sabia metade do que se passava, à sua frente apenas a baía tórrida e a ponte distante em toda sua corpulência, até que Morgana falou, espirrando as palavras.
- A minha mãe.
Jùlio fechou os olhos por um milésimo de segundo em que bateu a língua nos dentes, sabia como a história terminava. Morgana continuou de pé, balançando o copo na mão e arrastando os dedos no cinzeiro de vidro, sujando-os; era brilhante, mas ela queria mesmo vê-lo rachar. Em determinado momento, os traços dourados de uma capa de livro não bastaram mais e Morgana fartou do silêncio, do mormaço e do sigilo, simplesmente desatou a falar enquanto mexia em tudo na mesa; percebia-se que ali, o outro havia tentado ser sério.
- Eu disse que poderíamos, sei lá, passar umas férias em São Paulo, mas ela começou a berrar que não queria me ver saindo com o meu primo, porque em algum momento que, eu não presenciei, ele se tornou um maníaco sexual com propensões familiares... - um sorriso ridículo formou-se no canto da boca. - E pensar que só queria dar uma volta por lá, nem mencionei nomes.
Júlio lembrou-se da primeira vez que a havia visto, procurava por um psicólogo de sua espontânea vontade, afinal ninguém percebia na casa dela e tinha dezoito anos de qualquer forma. Regime de intolerância em famílias, ele conhecia, metade do seu apartamento era fruto daquilo, mas nela havia mais; muito além da pretensão de pais obcecados.
- Ah! - exclamou ela. - E quando disse que iria conhecer Nova York me deu por baleada no Central Park. Devo ter um alvo na cabeça porque, quer dizer, ela prevê isso até quando vou na padaria.
O pote de lápis quase entornou, de tanto que a mão o chacoalhava.
- Tem tantas coisas que eu gostaria de ver e... fazer, do que adianta ter dinheiro desse jeito?
De fato, Morgana tinha dinheiro, Jùlio também, mas ninguém era feliz. Depois de transpor um certo ponto, você percebe que mil reais não irão te livrar dos seus demônios, mas continua a gastar; não eram fúteis, apenas infelizes e nem queriam o que tinham.
Lá se foi Morgana, impulsionando o corpo para frente, depois de prender os cabelos atrás das orelhas. Assim que pôs os pés na estrada, cruzou os braços sobre o peito em uma tentativa boba de se proteger; a argola no topo da cartilagem, feita com a total desaprovação da mãe, brilhou irreverente sob os raios do sol. Atravessou a praça deserta em direção ao belo prédio com vista para a baía, mas daquela vez não se conteve pressionando o nome Jùlio e qualquer coisa no interfone. Na sua cabeça já não havia nada além do céu límpido e ríspido. O portão abriu sem aviso, acompanhado de um chiado desagradável; ele devia estar na janela, espiando. Morgana entrou com as pernas meio trêmulas, subindo as escadas até o segundo andar. A porta estava aberta e como havia imaginado, Jùlio fumava, apoiado à vidraça da varanda.
Virou-se de leve para vê-la, parada no meio do apartamento, os cabelos castanhos arrepiados pelo calor e o rosto corado; "sabe-se lá quanto demorou para tocar aqui", acabou pensando. Morgana sufocou a ânsia, sem querer saber dela, "Água" disse, ensaiando um copo no ar. "Pode pegar" e depois de sorrir Jùlio voltou a torturar seu cigarro. Toda história precisa de uma explicação e no final não tinha muito mistério. Jùlio Novaes era seu psicólogo, embora não parecesse tão profissional. Ao voltar da cozinha, Morgana parou para olhá-lo e quase riu, até que estava melhor naquele dia, pelo menos calçava um par de sapatos. Não tinha muitos clientes, talvez por atandê-los em casa com camisetas do rock e oferecendo limonada. Jùlio apenas não entendia como nove entre dez coisas podiam ser consideradas antiéticas. A verdade é que pessoas não fazem sentido.*
Jùlio, definitivamente, não queria consertar ninguém, nem podia. Ficou na varanda, ele sempre resolvia assim, com os cabelos pretos grudados no vidro e um braço atrás das costas.
- Aconteceu alguma coisa?
A voz dele fugiu lá para dentro, firme, enquanto o cigarro morria entre seus dedos; raramente os lábios encostavam no filtro quando a escutava. Nem sempre Morgana respondia, às vezes demorava um tanto. Jùlio não olhava, sabia que seria inútil e ela não iria falar. Dar as costas era um sinal ali, estavam livres para fazerem o que precisassem, fosse bom ou mau. Pôde inventá-la na cabeça, passando a mão na borda da mesa, na madeira escura e maciça, com os pensamentos a mil por hora ou talvez estivesse calma, ela se perdia nos livros, quadros e luzes, tinha aquele jeito de escapar das coisas. Ele não sabia metade do que se passava, à sua frente apenas a baía tórrida e a ponte distante em toda sua corpulência, até que Morgana falou, espirrando as palavras.
- A minha mãe.
Jùlio fechou os olhos por um milésimo de segundo em que bateu a língua nos dentes, sabia como a história terminava. Morgana continuou de pé, balançando o copo na mão e arrastando os dedos no cinzeiro de vidro, sujando-os; era brilhante, mas ela queria mesmo vê-lo rachar. Em determinado momento, os traços dourados de uma capa de livro não bastaram mais e Morgana fartou do silêncio, do mormaço e do sigilo, simplesmente desatou a falar enquanto mexia em tudo na mesa; percebia-se que ali, o outro havia tentado ser sério.
- Eu disse que poderíamos, sei lá, passar umas férias em São Paulo, mas ela começou a berrar que não queria me ver saindo com o meu primo, porque em algum momento que, eu não presenciei, ele se tornou um maníaco sexual com propensões familiares... - um sorriso ridículo formou-se no canto da boca. - E pensar que só queria dar uma volta por lá, nem mencionei nomes.
Júlio lembrou-se da primeira vez que a havia visto, procurava por um psicólogo de sua espontânea vontade, afinal ninguém percebia na casa dela e tinha dezoito anos de qualquer forma. Regime de intolerância em famílias, ele conhecia, metade do seu apartamento era fruto daquilo, mas nela havia mais; muito além da pretensão de pais obcecados.
- Ah! - exclamou ela. - E quando disse que iria conhecer Nova York me deu por baleada no Central Park. Devo ter um alvo na cabeça porque, quer dizer, ela prevê isso até quando vou na padaria.
O pote de lápis quase entornou, de tanto que a mão o chacoalhava.
- Tem tantas coisas que eu gostaria de ver e... fazer, do que adianta ter dinheiro desse jeito?
De fato, Morgana tinha dinheiro, Jùlio também, mas ninguém era feliz. Depois de transpor um certo ponto, você percebe que mil reais não irão te livrar dos seus demônios, mas continua a gastar; não eram fúteis, apenas infelizes e nem queriam o que tinham.
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Isto é um rascunho.